sábado, 13 de outubro de 2012

O PAPEL DA LITERATURA DE VIAGENS


O papel da Literatura de Viagens

Entrever o enredo histórico e patrimonial que se nos apresenta na envolvência do Campo de Santa Clara exige-nos abraçar uma cronologia bastante extensa, a qual teve início na conquista da cidade de Lisboa aos Mouros e tem por final os dias de hoje. A cidade de Lisboa mereceu desde sempre um importante lugar na literatura nacional e estrangeira. Quer pela sua posição geográfica, quer pela riqueza dos seus solos e águas, quer pela sua grandeza e espectacularidade, teve o privilégio de abonar dos mais diversos comentários e descrições a seu favor. Protagonista de várias aventuras, feitos e lendas, fez parte do imaginário grego e dos seus grandes clássicos, nomeadamente na “Odisseia” de Homero.
Efectivamente e, apesar de a crónica, inicialmente, não corresponder a um género literário que versava sobre sítios, mas sobre personalidades e os seus grandes feitos, à medida que, a mesma, foi alargando os seus horizontes, foi tomando em consideração a importância que toda a envolvente representava para esses mesmos feitos históricos[1]. Foram muitos os cronistas que, de uma forma ou de outra, se debruçaram sobre a cidade de Lisboa, utilizando-a quer como figurante nas heróicas histórias de outras personagens, quer como protagonista das suas próprias histórias.
Alguns séculos mais tarde, Damião Góis (1502/1574), na sua obra intitulada “Descrição da Cidade de Lisboa”, descreve a cidade de Lisboa aos seus limites, percorrendo a sua malha urbana, de ruelas, becos e travessas espalhados pelos seus montes e vales, de caminhos tortuosos, exaltando-a tanto pela beleza quanto pela variedade de construções, que ascendiam aos vinte mil edifícios. Ao elaborar esse inventário, exaustivo quase, da capital que se tinha expandido muito para além das muralhas, Damião Góis tomou o lugar de primeiro “Olisipógrafo” da cidade, cabendo, por seu lado, a Francisco d’Olanda (1517/1585), ao desenhar em aguarela a vista panorâmica de Lisboa e o seu primeiro “plano de urbanização”, a categoria de primeiro “Urbanista” da capital.[2]
No “Sumario e[m] que breuemente se contem alguas cousas assi ecclesiasticas como seculares que ha na cidade de Lisboa” (1554), Cristóvão Rodrigues de Oliveira (séc. 16), refere o facto de ter recebido por parte do Arcebispo de Lisboa a incumbência de obter informações sobre os rendimentos de todas as igrejas, colégios, mosteiros, hospitais, capelas e confrarias da cidade, bem como, o número de casas e seus moradores e ofícios desenvolvidos, facto que leva o autor a dividir a obra em duas partes distintas, a Eclesiástica e a Secular.
Dá-se início, desta forma, ao despoletar de uma fase de interesse pelas riquezas urbanísticas da capital, as quais são descritas e transcritas, de forma repetitiva e quase exaustiva, em forma de inventário, por vários escritores ao longo dos séculos, como são exemplo disso o “Tratado da Majestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa na Segunda Metade do Século XVI” (1552) da autoria de João Brandão (séc. XVI), o “Livro das Grandezas da Cidade de Lisboa” (1620), de Fr. Nicolau de Oliveira (1566/1634), “Antiguidades da Mui Nobre Cidade de Lisboa, Império do Mundo e Princesa do Mar Oceano” (1623), de António Coelho Gasco (séc. XVII), a “Fundação, Antiguidade e Grandezas da mui insigne cidade de Lisboa” (1652), de Luís Marinho de Azevedo (séc. XVII), o “De sitio de Lisboa: sua grandeza, povoação, e commercio”, (1786) de Luíz Mendes de Vasconcelos (séc. 18), entre muitos outros.[3]
Outras são as obras que, embora de carácter mais geral, consagram à capital uma parte substancial das suas páginas, tal é o caso da “Corografia Portuguesa” (1706/1712) do Padre António Carvalho da Costa (1650/1715) e o “Mapa de Portugal” (1729) de João Baptista de Castro (1700/1775).
        No século XVIII, numa época que respirava das profundas mudanças culturais, sociais, económicas e políticas que despoletavam por todo o mundo, surge uma literatura, muitas vezes associada a viagens, que tentava divulgar e dar a conhecer o que de melhor o país tinha para oferecer.
Numa fase embrionário, surgiram os Diários de Viagens ou Livros de Viagens, os quais eram escritos por viajantes, que escolhiam Portugal, como local de estadia ou de passagem. “Robert South[4], numa carta a Miss Barker, dizia-lhe: «Fazes bem em ler livros de viagens[5], que são quase os únicos livros modernos dignos de leitura».“[6] O desencadear deste género literário teve a sua origem na Europa culta do norte, nomeadamente, Inglaterra, França e Alemanha, da segunda centúria de setecentos, altura em que a Península Ibérica não era, ainda, considerada como “europeia”.
Devido às alterações económicas, sociais, políticas e culturais sofridas, registou-se, no século XVIII, um aumento considerável de deslocações de estrangeiros a Portugal, que resultou no surgimento dos livros de viagens, que por encomenda ou por simples prazer de escrever diários de viagem, se transformaram num género literário ímpar e de grande valor. Extravasando a literatura da época, a apresentação do desconhecido e do exótico, através do relato e descrição de países, gentes e costumes diferentes, guiaram a predilecção por obras deste género.
Este género literário, quando explorado de uma forma mais séria, e menos fantasiosa, foi utilizado à luz da variedade de credos, religiões, sociedades e seus governantes, como forma de protesto e argumentação com vista ao “(…) abalo dos princípios racionais em que a sociedade vivia organizada. (…) minar a Autoridade, consubstanciada na Igreja Católica e na instituição monárquica.”[7]
Na maioria das vezes, os viajantes vinham a Espanha e Portugal com ideias predefinidas e baseadas na especulação. A viagem servia muitas vezes, como forma de confirmação e ilustração das suas teses. As sociedades Espanhola e Portuguesas eram consideradas demasiado atrasadas e ignorantes, fanáticas e bárbaras, baseadas numa inquisição que através do clero dominava os reis e desta feita todas as outras classes sociais. A censura funcionava como mecanismo de uniformização católica, que tentava a todo o custo manter o pensamento livre de ideias de mudança e inovação. Os Portugueses eram, ainda, acusados e censurados por não viajarem, senão para o Brasil, África e Índia, mostrando falta de interesse pela Europa culta.
A nível nacional, o grande Terramoto de 1755, desencadeou a curiosidade do mundo, sobre a cidade de Lisboa e do País. O espectáculo da tragédia, o pânico e o desespero humanos, aguçaram o interesse pela cidade.
 “(…) Lisboa em ruínas tornou-se um centro de atracção da curiosidade europeia. Os Protestantes aproveitaram o cataclismo para o apontarem como um castigo de Deus contra a idolatria e superstição dos portugueses. Assim, nos finais do século XVIII, as viagens a Portugal estiveram na moda em Inglaterra.”[8]

De uma forma geral, os livros de viagens, escritos por estrangeiros, no século XVIII, sobre Portugal, constituem-se como elementos de caracterização e descrição da nação e do povo português nessa época. Na maioria dos casos, foram escritos de forma tendenciosa e improvisada, generalizando o que lhes era permitido observar no percurso escolhido ao resto do país:
                                     “Enganados ou enganadores, ou ambas as coisas ao mesmo tempo, foi a tónica da maioria dos forasteiros que descreveram as suas viagens em Portugal na década de setecentos.
                                     Desses enganos por generalizações arbitrárias, por intuições sem agudeza nem alcance, por acomodação a ideias preconcebidas, se emendaram, censuraram ou corrigiram uns aos outros, mas nada que fossem os portugueses a fazê-lo.
                                     (…) Não é invulgar para um estrangeiro ver-se em sérias dificuldades para obter de fonte segura informações sobre o próprio país em que se encontra. No entanto, não deixa de causar admiração a negligência de tantas pessoas, aliás instruídas, que tendo vivido muitos anos no mesmo lugar, não chegam a conhecê-lo senão superficialmente, (…)”[9]

Apesar das várias irregularidades e defeitos apontados aos Livros de Viagens, estes foram responsáveis pela divulgação do património monumental português a nível internacional e, em muito boa parte, responsáveis pela redescoberta do próprio país pela elite nacional, de onde, entre outros, constam os nomes de Almeida Garrett (1799/1854), Alexandre Herculano (1810/1877), Inácio Vilhena Barbosa (1811/1890), Júlio César Machado (1835/1890), Ramalho Ortigão (1836/1915) e Júlio de Castilho (1840/1919) que, ou por serem assíduos leitores da literatura produzida no estrangeiro, ou por força da experiência do exílio, despertaram para o facto de o património monumental português ser motivo de interesse para os estrangeiros e de abnegação para os nacionais.
Não alheios à redescoberta do passado e do património nacional ficaram, ainda, alguns acontecimentos cujas repercussões foram desastrosas para esses mesmos valores, ou seja, o Terramoto de 1755, as três Invasões Francesas (1807-1811), a Guerra Liberal (1832-1834), a Vitória do Liberalismo (1834) e a Implantação da República (1910).
Neste sentido, “A renovação litteraria que a geração actual intentou e conclui, não foi instincto; foi o resultado de largas cogitações, veio com as revoluções sociais, e explica-se pelo mesmo pensamento d’estas.”[10]
                Das profundas mudanças políticas, económicas, sociais e culturais que tiveram início nos finais de 1700, nasceu uma nova tomada de consciência histórica e consequentemente o culto dos monumentos históricos. Alguns dos nossos escritores, cabecilhas de uma elite esclarecida e viajada, conseguiram através das suas obras, de forma mais ou menos evidente, despertar as consciências adormecidas para a problemática da salvaguarda do património monumental nacional construído:
“(…) O intelectual romântico, na linha de desenvolvimento de uma posição que já vinha do século XVIII, sentiu-se participante de uma «República das letras» constituída por todos aqueles que, tendo ascendido por mérito (e não por nascimento ou riqueza) ao papel de mediadores da verdade, deviam irradiá-la, tendo em vista reformar a «alma nacional».[11]
O desejo de “auto-conhecimento nacional”, levou a que uma elite culta e viajada, se dedicasse à produção de monografias locais e de outras variantes literárias que permitiram a divulgação do património artístico, monumental e cultural português, às quais passaram a chamar de Guias de Viagens, e que tinham duas versões, uma para os nacionais, outra para os estrangeiros.
Estes Guias de Viagens, foram responsáveis pela divulgação do património de muitos países, especialmente do português. Como já foi referido, alguns autores portugueses atraídos pela redescoberta do próprio país, escrevem monografias que permitiram o acesso, mais fácil, ao conhecimento da história nacional e local. Grandes incitadores nacionais desse novo tipo de literatura foram:
Almeida Garrett fundador do movimento romântico em Portugal, o qual manifestou desde o seu primeiro poema, um genuíno interesse pelo passado nacional e pela valorização da cultura popular, como fontes de inspiração para a mudança cultural que Portugal exigia. Em “Viagens na Minha Terra”, publicadas em 1846, Garrett apresentou uma moderna prosa literária portuguesa, uma miscelânea de estilos e géneros, resultantes da vivacidade das descrições e expressões utilizadas na crónica da sua viagem entre Lisboa e Santarém. Esta crónica, em que Garrett se revelou, ao mesmo tempo, autor e narrador, colocou a descoberto, igualmente, as características político sociais de um país que dava os primeiros passos para uma vivência social e política renovadora e liberal.
Alexandre Herculano considerado um dos principais vultos do romantismo em Portugal, aceitou os grandes desafios intelectuais do seu tempo, revelando-se num dos mais cerrados defensores da pátria, da sua história e do seu património construído.
“(…) Esforça-se por fazer da sua obra autêntica mensagem de dignificação colectiva, na esfera da acção como da cultura. Isto em meio de uma sociedade em que as aspirações românticas cediam cada vez mais o passo aos interesses egoístas; (…) interessam-no os destinos da Nação, o drama dos seus contemporâneos. Entre as criações e produções do romancista e do historiador, vai intercalando ensaios consagrados às realidades actuais, concretas, da administração, da economia, da cultura. (…) Aos artistas cabiam assim responsabilidades de curas de almas e cumpria-lhes por consequência manter o seu posto, como sinal da vocação que os enobrecia.”[12]

Ramalho Ortigão, uma das figuras da chamada Geração de 70, que ao desacreditar na capacidade de Portugal em se aproximar das sociedades modernas europeias e anticlericais, se voltou para as suas raízes, presenteando o seu público com a edição de várias obras de índole histórico patrimonial, tais como “O Mistério da Estrada de Sintra” (1871), As farpas”(1871-1887), As Praias de Portugal”(1876), “Notas de Viagem”(1879), A Fábrica das Caldas da Rainha (1891), “O Culto da Arte em Portugal” (1896), Arte Portuguesa” (1947), entre outras. Sendo de realçar, o papel fundamental desempenhado pelo Culto da Arte em Portugal, que se apresenta, quase, como uma cartilha, na instrução das várias gerações seguintes, no que diz respeito à salvaguarda do património.


[1] Gomes Eanes de Zurara (1404/ 1474), que foi sucessor de Fernão Lopes no ofício de cronista, autor da Crónica da Tomada de Ceuta, serviu-se de apontamentos deixados pelo seu antecessor. Zurara terá sido, igualmente, requisitado para a elaboração de obras de carácter senhorial, com o fim de exaltar e enobrecer o bom nome e fama de certas famílias, através do relato heróico dos seus feitos, do seu envolvimento e auxílio militares prestados à Coroa, na consolidação do poderio nacional nas Praças de Marrocos. Foi o caso das Crónicas do conde D. Pedro de Meneses, primeiro Governador de Ceuta e de seu filho D. Duarte de Meneses. No entanto, na elaboração da primeira Crónica, Zurara fez fé em documentos e testemunhos de pessoas que conheciam o primeiro Governador de Ceuta, pecando por omissão e por relatos pouco verídicos, que deram azo a invejas cortesãs. Por esse facto, passou o cronista a visitar os locais, de forma a tomar conhecimento pessoal dos seus palcos geográficos e a proceder à recolha de depoimentos locais, que lhe possibilitassem um relato mais fiel e verídico dos acontecimentos. 
[2] CARDOSO, António José Andrade Muñoz de, Urbanismo e Arquitecturas, Lisboa dos Descobrimentos, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura Paisagística, Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, Lisboa, 1995, p. 15.
[3] TEIXEIRA, Luiz, Lisboa e os Seus Cronistas, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1943, p. 6 e BRANCO, Fernando Castelo, Op. Cit., pp. 15/16.
[4]  Robert Southey (1774/1843), historiador e poeta laureado britânico da escola do Romantismo.
[5] “Journey from London do Genoa, through England, Portugal Spain and France” de Baretti, “État présent du Royaume de Portugal em l’année 1766” de Dumouriez, “Travels Through Spain and Portugal, in 1774” de Dalrymple, “Travels Trough Portugal and Spain, in 1772 and 1773” de Twiss, “A General View of State of Portugal” de Murphy, “Flore portugaise ou description de toutes les plantes qui croissent naturellement en Portugal” de Link, “Letters Written During a Short Residence in Spain and Portugal. With Some Account of Spain and Portuguese Poetry” de Southey e “ Portugisisk Resa, Beskrifven i Breftill Vänner”de Ruders, que quer pela sua notabilidade, fidelidade nas descrições, flagrância dos aspectos superficiais, pelas informações e comentários ou pelas opiniões heréticas, estes livros, muito contribuíram para a formação da imagem, de Portugal, que ficou corrente na Europa do século XVIII e que foi aceite pelo português, apenas um século mais tarde, como a «vera efígie do seu país»., in CHAVES, Castelo Branco, Os livros de viagens em Portugal no Século XVIII e a sua projecção europeia, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Amadora, 1977, p. 14.  
[6]  Idem, p. 9.

[7] CHAVES, Castelo Branco, Op. Cit., p. 11.  
[8] Idem, p. 13.
[9] CHAVES, Castelo Branco, Op. Cit., pp.27 e 29.
[10]  BRAGA, Teófilo, História do Romantismo em Portugal, Ulmeiro Universidade, Lisboa, 1984, p. 105.
[11] CATROGA, Fernando, CARVALHO, Paulo Archer de, Sociedade e Cultura Portuguesas II, Universidade Aberta, Lisboa, 1996, p. 37.

[12] CIDADE, Hernâni, Século XIX – A Revolução Cultural em Portugal e alguns dos seus Mestres, Colecção «Ensaios», Edições Ática, Lisboa, 1961, p. 42.

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